quinta-feira, 13 de junho de 2013

Pollyanna

    Odeio gente muito feliz. Aquelas que parecem que são felizes pra sempre. Odeio gente que acorda feliz, com cara de atriz maquiada, o café da manhã cheio de frutas e cores esperando na sala preparado por não-se-sabe-quem. Odeio gente que corre atrás de passarinhos nos parques. Passarinhos são sujos e transmitem piolhos. E eu odeio piolhos. Odeio gente que dá bom dia animado mesmo quando não queria dar bom dia nem pro espelho. Odeio gente que finge ter a vida perfeita quando é cheia de problema na família, no coração, na saúde, no bolso, e deixa todos no refrigerador. Odeio gente que só ri de piada bem formulada, e só conversa sobre as possíveis soluções pros dilemas sócio-econômicos do planeta.

    Odeio gente que fala correto e não vive o que diz. Odeio gente que maltrata velhinhos na rua. Odeio gente que coloca prendedor de roupa no rabo do gato. Odeio gente que acha um lado bom pra tudo, Pollyanna! Até tu, com os seus joguinhos do contente me irritam profundamente em dias como esse.
    Odeio gente que não vive os próprios sentimentos. Gente que força um sorriso pra não responder o que aconteceu. Odeio gente que só se acha feliz perto dos outros, e quando se encontra sozinho não sabe nem quem é. Odeio gente que não vive os próprios sentimentos, de novo. Aquelas que se sufocam e não se abrem pros outros, mas não por "não quero incomodar", e sim por orgulho, de não querer parecer fraco.
    Pra mim, sentimento tem que ser vivido. Até - principalmente, eu diria - os piores. Senão, se não gastos, eles ficam impregnados no nosso couro e lá ficam por um bom tempo. É deixando que ele se sinta reinar que faz com que ele vai embora. Chega um momento, que de tanto se encher de sentimentos ruins, eles transbordam e vão embora. É por isso que eu me afundo na deprê quando ela vem. Evito o chocolate, lógico. O verão tá aí e estudar anda aumentando o peso do meu cérebro. Mas basta uma noite bem dormida, e os pensamentos ruins se esvaem, como os passarinhos que a galera chata do parque sai correndo atrás. Tem dias que nem o jogo do contente funciona.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Dialogando

Textos de Maíra Viana Barros

    Era uma vez um amor. Entrou pela porta da frente, pedindo licença, veraneando a vida, serpenteando o coração. Veio assim ligeirinho, serelepe, versador. Foi logo preenchendo os espaços, ocupando as gavetas do armário, evidenciando a alegria em ter, à mesa, mais um prato. Chegou e foi ficando, feito um sambinha bom, desses que grudam no ouvido, sem pressa pra passar.
     Parecia que todo dia era natal. A gente acordava e se surpreendia com o outro ali do lado, como se Papai Noel tivesse nos deixado um presente ao pé da cama. Algo que, no fundo, já nos era familiar, mas nos divertíamos em fingir certo estranhamento, como se pudéssemos prolongar a durabilidade do que aquilo significava. O bom velhinho nos presenteava, toas as manhãs, conosco. Era uma felicidade repentina, solfejava vivo em nós, o tal do amor.
    Depois de algum tempo, nos cansamos dos panetones, espumantes, sorrisos. Desmontamos a grande árvore natalina, nos despimos das roupas festivas, encaixotamos aquela alegria repetitiva, onipresente, gasta. Já não havia novidade em amanhecer, pois estávamos sempre lá, um para o outro, querendo ou não, na saúde e na doença, nos invadíamos a ponto de não sabermos mais quem era quem. O amor violava os espaços, superlotava o armário do quarto, transbordava a pia em pilhas de pratos, persistia em arranhar no violão aquele seu sambinha chato.
    E foi assim miudinho, sussurrante, desertor. Saiu pela fresta da janela da área de serviço, de mau jeito, trazendo chuva pra dentro de casa.
    E era uma vez uma dor, entrando sem pedir licença, invernando a vida, serpenteando o coração. A gente acordava e se surpreendia sem o outro ali ao lado, como se o dia não tivesse permissão para começar, como se não estivesse valendo. Fechávamos novamente os olhos, cochilávamos mais dez minutos, como se pudéssemos reverter a realidade do que aquilo significava. O bom velhinho nos negava, todas as manhãs, o sonho do natal.
    Era uma agulha fina riscando a alma, a tal dor. Chegou e foi fincando, feito um chorinho triste, desses que grudam no ouvido, sem pressa nenhuma de passar.

*

    Todo dia eu acordo e me separo de você. Levanto, guardo os sonhos na gaveta da velha cômoda e troco o pijama. Saio de casa em rotineira condição. Reparo em minha própria sombra no chão e sinto falta da outra, que sempre esteve ali do lado. Como distrair o pensamento de algo que ser quer pensar, mas não se deve? Como amordaçar o que se sente, pra não mais sentir? Não sei.

    Todo dia eu acordo e me separo de você. Sigo meu caminho e busco outros prazeres. Preencho as lacunas de pensamento com chocolate e televisão. Troco os móveis de lugar para que nada me lembre o que eu não devo lembrar. E, diante do espelho, me convenço de que tudo isso é essencial. Chega uma hora, na vida, que temos que adotar certas medidas de segurança. É quando percebemos que só nós podemos nos salvar. Então, fica combinado assim: eu me salvo e você se salva. E a gente se vê qualquer dia. No último instante da história ou, quem sabe, nunca. Só em sonhos. Daqueles que guardamos nas gavetas da velha cômoda.
    Todo dia eu acordo e me separo de você. Pago contas, anoto recados, vou ao cinema, pego trânsito e pareço seguir em frente. Me separo de você e de tudo o que eu não quero mais viver. E encerro qualquer possibilidade de diálogo que possa nos fazer voltar atrás. Pois o tempo não se curva. E já não somos mais os mesmo. Faz tempo.
     E todo dia eu acordo e me separo de você mais um pouco... enquanto passam os anos... nove, dez.. o tempo sorri do meu esforço diário. E já não tenho notícias suas. E já não sei o que dizer quando me perguntam: "E fulano, que fim levou?". E percebo que aprendi a adestrar os pensamentos e lidas com as mordaças adequadas aos arredios sentimentos.
    E assim, todo dia eu acordo e me separo de você de novo. E preencho mais gavetas, com mais sonhos improváveis. Porque chega uma hora, na vida, que temos que adotar certas medidas de segurança. E ando pelas ruas somente com a minha sombra e tudo parece estar no seu lugar. Pareço seguir em frente. E, assim, vou me separando de você, em frações de tempo, todo dia de manhã, quando acordo.
    O problema é que toda noite eu adormeço e me caso com você de novo.

*

    Nada mais me pertence. Meus sonhos, meus medos, as coisas que sou e não sei, as coisas que quero e não fui. Como posso impedir o inevitável, se já não sou o que era momentos atrás? E meus pés, que fazem eles? Não me respeitam mais e lhe acompanham como se tivessem, pra sempre, sido seus. Como se atrevem, você e essas partes todas de mim? Não me reconheço mais, sabendo o que sei agora. Entendendo que o que mais quero é deixar que me leves pelo braço, flutuando nesse bosque-mar que vislumbro, ambos se iniciando em algo mútuo, torcendo sempre para que bons ventos possam nos alcançar.